segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Critica - Cem Dias por Valmir Santos

As armadilhas da farsa


Tão cara à historiografia do teatro mundial, de ampla recepção nos palcos brasileiros, a irresponsabilidade da farsa é mais complexa do que parece. Os deslimites que lhe dão razão de ser – a extravagância, o ridículo, a caricatura, o elogio do baixo-ventre e outras variantes – também podem pregar suas peças. Cem dias reflete o transbordamento nos dois sentidos: o fundamento da opção pelo gênero e o escoamento das consistências formal e temática pelos meandros de um projeto que, paradoxalmente, faz jus ao nome do Grupo Risco de Teatro e desperdiça parte considerável de seu potencial.

Notável e rara a disponibilidade dos criadores ao abraçar um contexto histórico em terras e mares portugueses que antecedem a vinda da Família Real ao Brasil, no início do século XIX, e dão notícias das raízes da corrupção endêmica que atravessou o Atlântico e ainda viceja mais perto do cidadão do que ele talvez desejaria – é fácil apontar o dedo só para os políticos em Brasília, tão longe e tão perto.
                                      
É alvissareiro, ainda, que o grupo chame a consciência crítica para si, enquanto artistas, e a compartilhe a partir da plataforma do cômico. Distinto do recorte histórico que costuma brotar de processos artísticos em dramas de franzir a testa, circunspectos.

A dramaturgia de Otávio Barwinski e Rafael Orsi de Melo transparece referências geopolíticas, econômicas, sociais e comportamentais da pesquisa que levantaram para bolar a trama em que dois trapaceiros consanguíneos, os primos Gomes (Melo) e Aderbal (Rodolfo Lemos), embarcam numa das naus da corte do príncipe Dom João VI rumo à sua principal colônia extrativista.   

Essa dupla, provavelmente lisboeta, tem um quê do malandro brasileiro e catalisa a narrativa em sabotagens e tentativas de puxar o tapete um do outro. Os interesses e as chantagens são sexistas e monetárias, os dois motores capitais. Há um imbróglio com uma prostituta, Medusa Fogosa, e um conflito ou outro com o capitão do navio veleiro, ambos interpretados por Barwinski – um capitão com pinta de Napoleão Bonaparte, militar que comandou as tropas francesas na invasão a Portugal, motivo da fuga da corte para o Brasil, em 1808.

Diante desse vasto painel, o espetáculo tenta encontrar um ritmo que corresponda à condensação dos fatos. Ao mesmo tempo em que não ambiciona soluções didáticas, a concepção geral prefere atalhos de eficiência duvidosa. A direção de direção de Daniel Olivetto e diálogos dos atores e coautores concedem à superficialidade do riso e contrariam o pensamento articulado nas entrelinhas da peça.

Melo e Lemos são talentos subaproveitados diante do que já transmitem como comediantes (em sentido amplo) e tirariam de letra o jogo farsesco que a montagem insinua. Falta sensatez para sublinhar as expressões física e vocal sem barateá-las com a ligeirice televisiva reconhecível pelo público, por isso os nexos esvaziados. É aqui que a armadilha se escancara: a ânsia de ganhar a plateia com piscadelas quando já a tem nas mãos por meio de outras invenções contidas no corpo do espetáculo.

Os artistas de Cem dias chegam a lampejos surpreendentes como a arara ou portal que provém objetos, adereços e mecanismos acionados em momentos estratégicos e eficientes enquanto espaço cenográfico expositivo que estimula o espectador a ver como as coisas funcionam no teatro, na política, na sociedade.

Alguns desses achados equivalem a um bálsamo diante do anacronismo nas atuações frenéticas. Exemplos: a cena em que um dos primos enfia a mão no figurino da cortesã, pendurado num cabide, e encarna um duplo feminino; e o uso do teatro de sombra ao final, quando a paródia é breve e enche os olhos.


Com todo esse material contraditório em mãos e na casa do terceiro ano de formação o Risco reúne condições e experiências de procedimentos para desempenhar sua pesquisa continuada e efetivamente transgressiva, independente do gênero.

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