quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Critica - Maquina de Dar Certo por Valmir Santos

Desfocalização e método

Um dos paradigmas do texto dramático é a capacidade de expor pontos de vistas. Ao constatar ambiguidades e pluralidades, o observador pode fruir sua leitura, afetar-se. Quando os fios não estão dados, a aventura do espectador resulta, em si, a fricção intertextual que o criador contemporâneo deseja obter, suspendendo os significados e plasmando os significantes. São estes que dão as cartas no espetáculo da Cia. Bruta de Arte, fortemente apoiado nas pulsações físicas, sonoras e visuais (o desenho de luz, sobretudo).

Máquina de dar certo é um título irônico para uma dramaturgia expandida, de epicentro corporal, erguida sob o elogio ao erro. Uma dezena de atuadores confere um prazer incomum de estar em cena, em estado performativo, deflagrando o esgotamento e o fracasso indutores do sistema opressivo a que são psicofisicamente condicionados.

Num roteiro que parece concebido em colaboração (a ficha técnica não informa a dramaturgia não verbal), toma-se os experimentos comportamentais do psicólogo norteamericano Frederic Skinner (1904-1990) para arquitetar um espetáculo pautado por uma voz de comando dissimulada em didatismo. Todos os estímulos de uma ciência que se acredita evolutiva pelo pretendido controle mental ou orgânico são aplicados num ambiente fechado, hostil e sempre em grupo.

A anulação do indivíduo e mesmo o coro como massa de manobra dão lugar às subversões. O dispositivo maquinal – a voz autoritária, de apelo fordista, ferrenha no monitoramente dos testes – é contraposto aos próprios corpos a que tenta anular autonomia. A exaustão reaviva as fisionomias das mulheres e dos homens. A dança e a trilha sonora embalam essas figuras teoricamente combalidas. Elas vibram. Há um prazer reconhecível em contrariar as regras do jogo imposto e várias vezes interrompido; em assumir o “game” e não sucumbir à neurastenia. Naturalmente, as cobaias são incitadas à disputa com o outro, o “concorrente”, mas esses conflitos não chegam a se desenvolver. A instabilidade é o que os une, apesar do eterno retorno à condição que se pensava superada: mudança de posto para o “vencedor” de turno, apartado.

O espetáculo dirigido por Roberto Audio contorna os próprios limites instauradores de uma dramaturgia de confinamento. Filas militares, alinhamentos perpendiculares e rompimento literal da quarta parede com os atuadores tomando os corredores do teatro empoderam a movimentação coreográfica nesse teatro-dança de invocar Pina Bausch. Não chega a ser um levante coletivo, mas a ação física e a fisionomia dos integrantes da companhia – tipos tão diversos e algo surreais – infiltram um mundo paralelo de cadências e jogos cerebrais transmissores de pesquisa artística sólida.

A criação leva às últimas consequências a noção do fazer cênico enquanto artifício,
correlacionando metodicamente sutilezas, engenhosidades e estranhamentos gestuais como resistências à operação desmonte a que as pessoas estão submetidas. A mentira e os simulacros ficam realçados pela marionetização oculta. Afinal, a manipulação do espetacular é hiperbólica. Os mínimos sinais de relatos são abafados – não há vez para voz própria, claro. A maneira de reativar forças é respirar e encontrar janelas dançantes nesse ambiente de exceção, disciplinar, em meios a tantos espasmos e perplexidades. A arte é a válvula de escape. O imaginário contrapõe a ilusão como no caminho amarelo de O mágico de oz.


Em sua primeira década, a Cia. Bruta, de São Paulo, consolidou personalidade com processos conceituais que desfraldam as dobras mais ínfimas de bio, micro e macropolíticas.

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