quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Critica - O Quadro de Todos Juntos por Valmir Santos

Zooteatralidade

De Esopo a Charles Darwin, estendendo a Franz Kafka e George Orwell, a condição humana encontra na animalidade espelhamentos e contrastes que muito interessam aos campos da investigação e da criação em arte, filosofia e ciência. O espetáculo do coletivo mineiro Pigmalião Escultura Que Mexe explora esse terreno de maneira exasperante.

Alude à estirpe do autodeclarado “teatro desagradável” de Nelson Rodrigues, guardadas as proporções de que o drama aqui assenta sobre outros desejos: o das formas animadas. O boneco e a irracionalidade tocam feridas familiares ao bicho homem e ungem uma espécie de zooteatralidade para tempos de crise de representatividade que, sabe-se, começa dentro de casa e ganha o espaço público.

A transversalidade artes cênicas/artes visuais coloca a família disfuncional em outro patamar de relação com o espectador que não o mero código psicológico. As situações de abuso, a hipertrofia dos vínculos e a violenta codependência desde a primeira infância constituem, por si só, um material emocionalmente explosivo.

O quadro de todos juntos vai a fundo nesses subterrâneos e se deixa acompanhar por arquiteturas visuais e sonoras indicativas de como o teatro de formas animadas tem evoluído em abordagens para o público adulto em certas praças brasileiras, caso da Belo Horizonte natal do Pigmalião, a mesma do Giramundo, núcleo paradigmático da pesquisa com bonecos em mais de quatro décadas.

A fisionomia suína realista é a tônica nos bonecos e nas máscaras em parte dos atores. Em alguns deles, a manipulação direta é uma extensão do próprio corpo, fusão que lembra a figura mitológica do minotauro: em vez da cabeça de touro, temos a cabeça de porco e o tronco confeccionados. Da cintura para baixo, carne e osso.

Apesar de fonte de alimento apreciada em muitas mesas, o porco é comumente associado à imagem negativa da sujeira, do mau-caratismo. Em cena, o instinto selvagem que pauta a relação do macho, da fêmea, das crias e dos agregados está longe de digestível. Sem a âncora da palavra, o espectador é instigado a partir das sensações pictóricas e sonoras. Não há estrutura cenográfica, mas um desvanecer em penumbras e contraluz passíveis do lugar do inconsciente.
É um espanto que o coletivo ignore em sua ficha técnica o artista ou os artistas responsáveis pelo desenho sonoro poderoso na indução ao raciocino da fala por meio de ruídos e grunhidos, ao que parece programados para o tempo da ação dos manipuladores e, às vezes, incidentais. A sonoridade onisciente – algum grau de silêncio ajudaria a processar o dilacerar constante – corrobora tendência do roteiro a redundar sequências como o ato de amamentar; o atrito pai/filho, mãe/filha; e o espocar do flash da máquina fotográfica simulado pela iluminação.

Plena em conteúdos arquetípicos, ímãs primais, a dramaturgia não-verbal de Eduardo Felix (codiretor da obra com Igor Godinho) atinge seus melhores momentos quando lança mão de percursos e quebras que transcendem os níveis patológicos expostos. Afinal, o que fazer depois de emergir os desvios dos animais demasiado humanos desse clã? Felizmente, não há saídas morais ou prejulgamento na elaboração ficcional. Constata-se e celebra-se a dança das linguagens sem prescrição.

Moram lá nos interstícios da autofagia e da visão da mulher como máquina procriadora – sob a complacência secular das sociedades matriarcais – o pensamento estético desestabilizador que o Pigmalião produz. Embrião de uma cena curta (15 minutos) intitulada O quadro de uma família (2013), o espetáculo O quadro de todos juntos (2014) exemplifica o interesse do coletivo por caminhos desbravadores em oito anos de trabalho e pesquisa.

Em tempo: na mitologia grega, o rei Pigmalião é um escultor exímio cujo amor por uma de suas criações, Galateia, convenceu a deusa Afrodite a atender ao seu pedido e dar vida à mulher outrora de marfim com quem ele finalmente se casou e teve dois filhos. Ou pode ser lido também como o movediço terreno da idealização... O septeto da criação em análise manipula os bonecos com um registro que pode dar a impressão de “grosso”, numa passagem ou outra, mas isso deve estar correlacionado à imperfeição como estratégia, dadas as distorções vasculhadas.

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